Trecho - Cavalariços e caniços

Trecho de Cavalariços e caniços de Francisco Gabriel Rêgo

Nada do que eu pudesse ter contado poderia lhe fazer recordar os dias que aqui o senhor esteve e de tudo o que o senhor acreditou ter carregado junto com a sua partida. Devemos sempre trazer muito mais do que queremos e aguentamos. Muito embora sempre sejamos levados a acreditar que deixamos as nossas memórias em cada uma das paradas do caminho. Sei bem o que o senhor deve estar sentido, agora tão distante de casa. Foi assim comigo antes da minha volta. Para partir, precisamos sempre escolher o que devemos deixar, o que devemos esquecer, recriando em cada esquecimento uma espécie de memória medida por essa capacidade de sempre deixar que o mundo nos escape. Existe um quê de recriação em cada um dos esquecimentos, como se iluminando uma parte de um tecido que pudesse com os dedos tatear, recriássemos um universo forjado pela luz opaca alcançada por nossos dedos, desvelando esse mundo imperceptível que há de existir em todo lugar, em uma realidade recontada e sobrescrita em tudo, escondida de nós, pelo nosso tato, diante dos nossos olhos. Se podemos saber o que recordarmos, esquecer é um ato de coragem a que ninguém nos poderia obrigar, cabendo a nós, e apenas a nós, esquecer o que queremos. Mesmo que todos esses anos pudessem ter produzido em minhas memórias mais espaços do que qualquer outra materialidade, não poderia deixar de valorizar, com os sentimentos devidos, tudo aquilo que esqueci e deixei, em uma espécie de certeza para os dias que, por todo esse tempo, me transformaram naquilo que nunca acreditei, desde a última vez em que pude observar com meus próprios olhos os acontecimentos sucedidos em nossa cidade por mais aquele ano e que haveriam de adentrar em nossa memória como os cheiros e o gosto da infância.

Nunca soube como essas coisas se dão, nem tampouco como somos levados a acreditar que a memória pode ser construída como pequenos objetos que, com os dedos, pudéssemos moldar, buscando construir novas formas que aos nossos olhos nos fossem impossíveis de compreender ou apenas imaginar. Mesmo que quiséssemos dizer o que havíamos feito ou criado, possuíam um significado que mais parecia com o visgo do leite da casca do mamão, quando temos que riscar sua casca a fim de que amadureça bem diante de nós. De certo, a preexistência do amadurecimento é a certeza de que tudo estará por acontecer, muito embora possamos afirmar que sempre haverá uma explicação para os mistérios humanos, para os pensamentos, para a natureza e para os nossos medos, assim como as chuvas, o calor e os ventos, os problemas do mundo aos quais não existiria livro nenhum capaz de responder de forma precisa. Eram apenas suposições e vislumbres diante de um mundo tão distante, tão impreciso, impossível de ser dito, já que apenas nos caberia simplesmente admirar o que não temos certeza. Assim como uma obra de arte cujo significado pudesse ser construído à medida que também remediássemos o nosso olhar e pudéssemos acreditar, sem sombra de dúvida, que a maior de todas as belezas era somente o enxergar, o sentar-se diante da janela, da porta de nossa casa e, assim, observar cada um dos acontecimentos que se desenharia sob o mundo insurgente. De tudo de novo que poderia agora ter lhe contado, pai, não seria para fazer o senhor esquecer os medos que lhe acompanhariam pelos caminhos seguidos por essa guerra. Nem que eu pudesse dizer com todas as palavras que o mundo não era mais o mesmo e que tudo já tinha se acertado como alguns teimosamente relutavam em acreditar, nada seria suficiente para apaziguar o seu coração distanciado pelo medo que acompanharia qualquer soldado em uma guerra. Nem mesmo a notícia da chegada e da partida de mais um circo esquecido por aqueles rincões poderia restituir no senhor a alegria que a tranquilidade de um tempo de paz poderia nos assegurar.