Thoreau

Publicado em 07 de julho de 1917 na revista Times Literary Supplement em comemoração aos 100 anos do nascimento de Henry David Thoreau.

Danilo Matos

3/21/202411 min read

Há cem anos, em 12 de julho de 1817, nascia Henry David Thoreau, filho de um fabricante de lápis na cidade de Concord, em Massachusetts. Thoreau teve sorte no que diz respeito aos seus biógrafos, que foram atraídos para ele não tanto pela sua fama, mas pela afinidade que tinham por suas opiniões, embora não lhes tenha sido possível revelar mais sobre Thoreau do que a leitura dos seus livros já nos mostra. Sua vida não foi abundante em acontecimentos; ele possuía, como afirmava, “uma inclinação para ficar em casa”. Sua mãe era ágil e loquaz e tão dada a divagações solitárias que um dos seus filhos por pouco escapou de nascer em campo aberto. Seu pai, por outro lado, era um homem “pequeno, calado, vagaroso”, mas hábil o bastante para fabricar o melhor lápis do país, graças ao segredo de misturar grafite pulverizado com uma espécie de argila e água, que era então enrolado em folhas, cortado em tiras e depois queimado. Com algumas economias e um pouco de ajuda, conseguiu mandar o filho para Harvard, ainda que Thoreau não tenha dado a devida importância a essa oportunidade tão onerosa. Foi em Harvard, em todo caso, que seu nome se tornou visível para nós. Um dos seus colegas viu naquele jovem algo que só reconheceremos melhor no adulto, de modo que, ao invés de retratá-lo, citarei aqui o que foi visível aos olhos penetrantes do Reverendo John Weiss:

“Ele era frio e inabalável. Seu aperto de mão era úmido e indiferente, como se ele nos cumprimentasse não com a própria mão, mas um objeto em seu lugar. Quão interessante eram seus olhos azuis proeminentes, que pareciam vagar pelo caminho antecipando seus passos, enquanto seu caminhar firme de um indígena o levava pelos corredores da Universidade. Não se importava com as pessoas; seus colegas de classe lhe pareciam remotos. Certo devaneio parecia sempre pairar sobre ele, e com tanta folga quanto suas roupas domésticas, que o piedoso cuidado doméstico fornecia. O pensamento ainda não havia avivado seu semblante, que era sereno, ainda que um tanto enfadonho, um tanto pesado. Seus lábios ainda não eram ríspidos; havia certa satisfação presunçosa na maneira como o canto dos seus olhos nos espreitava. É evidente agora que ele se preparava para sustentar opiniões futuras com grande determinação e com firme rigor pessoal. Seu nariz era proeminente, mas sua curvatura frontal caía sem firmeza por cima do lábio superior; lembramos dele pela sua semelhança com as esculturas de rostos egípcios de traços amplos, mas cismados, imóveis, fixos num egoísmo místico. Ainda assim, seus olhos pareciam investigar algo, como se ele tivesse deixado cair ou esperasse encontrar algo no chão. À rigor, seus olhos quase nunca saíam do chão, mesmo em suas conversas mais honestas…”

O texto segue falando sobre “a reserva e inaptidão” de Thoreau durante os anos da universidade.

É evidente que um jovem representado desse modo, cujo prazer físico tomava a forma de caminhadas e acampamentos, que não fumava nada senão “hastes de lírios desidratados”, que venerava relíquias dos indígenas e clássicos gregos com igual respeito, que nos primeiros anos da juventude adquiriu o hábito de “prestar contas” da sua própria mente num diário, onde seus pensamentos, sentimentos, estudos e experiências passavam pela revisão diária do rosto egípcio e dos olhos claros investigativos; é claro que esse jovem estava destinado a decepcionar tanto seus pais e professores quanto todos que desejassem moldar seu feitio e transformá-lo numa pessoa importante. Sua primeira tentativa de ganhar a vida de modo ordinário, como instrutor em escola, foi interrompida pela exigência de punir fisicamente os alunos. Ele propunha que se ensinasse moral em vez de castigá-los. Quando um comitê afirmou que a escola pagaria um preço por essa “leniência indevida”, Thoreau castigou formalmente seis alunos e, em seguida, pediu demissão, declarando que a escola “interferia nos métodos dele.” Os métodos que o jovem sem um tostão desejava empregar provavelmente envolviam a interação com certos pinheiros, lagos, animais selvagens e pontas de flechas encontradas na vizinhança, elementos que já exerciam controle sobre sua personalidade.

Mas naquele instante ele tinha que viver no mundo dos homens, pelo menos na parte notável do mundo do qual Emerson era o centro e professava a sua doutrina Transcendentalista. Thoreau se hospedou na casa de Emerson e logo se tornou, segundo seus amigos, quase indistinguível do próprio profeta. Se alguém de olhos fechados ouvisse os dois conversando, não saberia onde Emerson havia parado e Thoreau começado. “[…] em seus modos, no tom de voz, nos modos de expressão, mesmo nas hesitações e pausas de pensamento, ele havia se tornado um contraponto ao Sr. Emerson.” Isso pode ser bem verdade. As naturezas mais fortes, quando são influenciadas, submetem-se mais incondicionalmente; talvez isto seja um sinal de força. Mas que Thoreau tenha perdido qualquer parte da sua própria força no processo, ou tenha assumido permanentemente quaisquer cores que não as próprias, os leitores da sua obra certamente negarão.

O movimento transcendentalista, como todos os movimentos de vigor, representou o esforço de uma ou duas pessoas notáveis para se livrarem das roupas velhas que haviam se tornado incômodas para se ajustar melhor ao que lhes parecia ser a realidade. O desejo por reajustamento tinha, como Lowell registrou e as Memórias de Margaret Fuller testemunham, seus sintomas ridículos e seus discípulos grotescos. Mas, de todos os homens e mulheres cujo pensamento foi moldado em bloco, sentimos que Thoreau foi o que teve que se adaptar menos, que estava, por natureza, mais em harmonia com o novo espírito. Ele nasceu entre aquelas pessoas que, como Emerson escreveu, “deram silenciosamente, em sua adesão severa, uma nova esperança, que em todos os empreendimentos significa uma confiança maior na natureza e nos recursos dos homens que nas permissões dadas pelas leis da opinião popular.” Havia duas maneiras de viver que pareciam aos líderes do movimento dar escopo para obtenção de novas esperanças; uma em comunidade competitiva, como em Brook Farm; a outra, em solidão com a natureza. Quando chegou o momento de fazer a sua escolha, Thoreau decidiu-se enfaticamente pela segunda opção. “Quanto às comunidades”, escreveu em seu diário, “penso que prefiro manter meus aposentos de solteiro no inferno que participar do comitê no céu.” Qualquer que seja a teoria, no fundo de sua natureza estava “uma ânsia singular por tudo que é selvagem”, que o levou a fazer experimentos do tipo registrado em Walden, quer isso fosse bom para os outros ou não. Na verdade, ele decidiu colocar em prática a doutrina dos transcendentalistas mais à risca que qualquer outro e provar quais recursos um homem tem, depositando neles toda sua confiança. Portanto, ao chegar à idade de 27 anos, ele escolheu um pedaço de terra nos limites das águas verdes profundas do lago de Walden, construir uma cabana com as próprias mãos, tomando emprestado com relutância apenas um machado, e fez morada para, como disse, “confrontar-se apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se eu não poderia aprender o que ela tem para me ensinar, em vez de, quando estiver para morrer, descobrir que não vivi.”

E agora temos a chance de conhecer Thoreau como poucas pessoas são conhecidas, talvez até pelos seus próprios amigos. Poucas pessoas, é certo dizer, têm tanto interesse em si quanto Thoreau tinha nele mesmo, pois se fôssemos agraciados com um egoísmo tão intenso, faríamos o máximo para sufocá-lo de modo a vivermos com nossos vizinhos em bons termos. Não temos segurança suficiente em nós mesmos para abandonar por completo a ordem estabelecida. Essa era a aventura de Thoreau; seus livros são o registro desse experimento e seu resultado. Ele fez tudo para intensificar seu entendimento a respeito de si mesmo, para alimentar o que fosse peculiar, para isolar-se do contato com qualquer força que pudesse interferir no dom imensamente valioso da personalidade. Era seu dever secreto, não para si mesmo apenas, mas para o mundo; e um homem dificilmente é egoísta quando o é numa escala dessa dimensão. Quando lemos Walden, o registro dos seus dois anos na floresta, temos a sensação de contemplar a vida através de uma poderosa lupa. Andar, comer, cortar troncos de madeira, observar um pássaro num galho, cozinhar o próprio jantar — todas essas ocupações quando purificadas e sentidas novamente se provam maravilhosamente engrandecidas e brilhantes. A coisa comum é tão estranha, a sensação cotidiana tão surpreendente, que para misturá-la ou perdê-la vivendo com o rebanho e adotando hábitos que convém a maioria é um pecado, um ato de sacrilégio. O que tem a civilização para dar, como pode o luxo melhorar esses fatos tão simples? “Simplicidade, simplicidade, simplicidade” é o seu grito. “Em vez de três refeições ao dia, se for necessário como apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduza as demais coisas em proporção.”

Conforme ele andava pela floresta e sentava-se quase sem se mover por horas, como uma esfinge numa pedra observando os pássaros, Thoreau definiu sua posição no mundo não apenas com honestidade inabalável, mas com um brilho de êxtase no coração. Ele parecia abraçar a própria felicidade. Aqueles anos foram cheios de revelações — ele se encontrava tão independente dos homens, tão perfeitamente equipado pela natureza não apenas para se manter alimentado, abrigado e vestido, mas também incrivelmente entretido sem qualquer ajuda da sociedade. A sociedade sofreu um bom bocado em suas mãos. Ele colocou as suas queixas tão adequadamente que só podemos crer que ela terá que prestar contas a esse nobre rebelde. Ele não queria igrejas ou exércitos, postos de correio ou jornais, e com muita consistência se recusou a pagar seus dízimos, a ponto de ser preso por não pagar o poll tax ao governo estadunidense. Congregar-se para fazer o bem ou procurar prazer lhe eram atividades intoleráveis. A filantropia, dizia ele, é o sacrifício que se faz ao senso de dever. A política lhe parecia “irreal, incrível, insignificante,” e a maior parte das revoluções, não tão importante quanto a seca de um rio ou a morte de um pinheiro. Ele queria apenas ser deixado sozinho, andando na floresta em seu terno Vermont cinza, imperturbável até mesmo pelas duas pedras de calcário que, ao acumularem poeira, foram arremessadas pela janela.

Mas, ainda assim, esse é o homem que abrigou escravos fugidos em sua cabana; esse eremita foi o primeiro a sair em defesa de John Brown; esse solitário e autocentrado não dormiu nem pode pensar enquanto Brown dormia na cadeia. A verdade é que alguém que reflete tanto e tão profundamente quanto Thoreau sobre a vida e a conduta é possuído por um senso anormal de responsabilidade pelos seus, quer ele escolha viver no mato ou ser o presidente da república. Trinta volumes de diários em pequenos cadernos que ele juntou de tempos em tempos com imenso cuidado provam que o sujeito independente que professava se importar tão pouco pelos seus semelhantes fora possuído por um intenso desejo de comunicar-se com eles. “Muito me agradaria,” escreve ele, “comunicar a riqueza da vida para os homens e lhes dar o que há de mais precioso em minha posse… Não tenho nada meu, exceto a minha habilidade peculiar de servir ao público… Eu gostaria de comunicar aquelas partes da minha vida que, com gratidão, eu viveria mais uma vez.” Ninguém poderia lê-lo ou relê-lo sem levar em conta esse desejo. Ainda assim, permanece a questão sobre se ele teve sucesso em compartilhar sua vida como uma forma de distribuir sua riqueza. Quando lemos seus livros mais fortes e nobres, em que cada palavra é sincera, cada frase bem escrita com um rigor que ele conhecia bem, somos deixados com um sentimento estranho de distância; nesses instantes ele é um homem que tenta se comunicar, mas não consegue. Seus olhos estavam no chão ou no horizonte. Ele nunca fala diretamente para nós; ele fala em parte com ele mesmo e em parte com algo místico, para além da nossa compreensão. “Digo para mim mesmo”, escreve ele, “devia ser o mote do meu diário”, e todos os seus livros são diários. Outros homens e mulheres foram excepcionais e belos, mas foram distantes; eram diferentes; ele acharia muito difícil entendê-los. Eles eram tão estranhos quanto “os cães da pradaria”. Todas as relações humanas eram indefinivelmente difíceis; a distância de um amigo para outro era imensurável; todas as relações humanas eram precárias e tendiam a acabar em decepções. Porém, ainda que preocupado em fazer o possível para amenizar seus ideais, Thoreau estava consciente de que a dificuldade não podia ser ultrapassada apenas da sua parte. Ele era diferente das outras pessoas. “Se um homem não mantém o ritmo dos demais, pode ser que ele escute outro tambor. Que ele caminhe de acordo com a marcha da música que ouve, qualquer que seja ela e independente da distância do seu som.” Ele era um homem selvagem e jamais se submeteria a ser adestrado. E aqui está o seu charme particular. Ele ouvia uma batida diferente. Ele era um homem a quem a natureza havia dotado de outros instintos e para quem, pode-se supor, ela havia revelado alguns de seus segredos.

“Deve ser uma espécie de lei”, diz ele, “que não se possa ter com o homem e com a natureza a mesma benevolência.” Talvez isso seja verdade. A maior paixão da sua vida era a natureza. Era mais que paixão, na verdade; era uma afinidade; e nisso ele se diferenciava dos demais. Ele fora agraciado, nos dizem, com uma extraordinária aptidão para os sentidos; ele podia ver e ouvir o que os outros não podiam; seu toque era tão delicado que ele podia apanhar uma dúzia de lápis de uma caixa sem um medidor; ele encontrava seu caminho na floresta à noite. Ele poderia pegar peixes na correnteza com as mãos; ele poderia encantar um esquilo para dormir no seu casaco; ele podia se manter tão imóvel que os animais brincavam ao seu redor. Ele conhecia a aparência do campo tão intimamente que poderia acordar no bosque e saber, pelas flores aos seus pés, a hora, o dia e a estação do ano. A natureza tornou fácil para ele escolher um modo de viver sem esforço. Ele era tão habilidoso com as mãos que, trabalhando por quarenta dias, podia com isso folgar pelo resto do ano. Nós mal sabemos se o consideramos como pertencente a uma raça antiga de homens ou à nova raça que está por vir. Ele possuía a fortitude, o estoicismo, os sentidos intactos de um indígena, combinado com a autoconsciência e o descontentamento exato da maioria dos homens modernos. Em certos momentos, parecia ir além das nossas capacidades humanas no que percebia no horizonte da humanidade. Nenhum filantropista esperou mais do horizonte humano, ou impôs a si próprio tarefa mais nobre. Aqueles cujos ideais de paixão e diligência rígidos são os que têm maior capacidade para se entregar, ainda que a vida não lhes peça tudo, e os force a se conter, em vez de entregar toda sua riqueza. Entretanto, apesar do muito que Thoreau foi capaz de fazer, ele ainda via possibilidades maiores; ainda se sentiria, em certo sentido, insatisfeito. Essa é uma das razões pela qual ele pode fazer companhia aos jovens da geração mais nova.

Thoreau morreu quando estava na plenitude da sua vida e teve que suportar a doença entre quatro paredes. Mas ele aprendeu com a natureza tanto o silêncio quanto o estoicismo. Nunca tratou das coisas que mais o comoveram em seu destino privado. Mas, com a natureza, aprendeu também a se fazer contente, não impensadamente ou egoisticamente contente, e com certeza não resignadamente contente, mas com uma confiança saudável na sabedoria da natureza, pois na natureza, como ele diz, não há tristeza. “Eu estou desfrutando da existência como sempre”, escreveu em seu leito de morte, “e não me arrependo de nada.” Ele falava consigo mesmo sobre indígenas e antílopes quando, sem se confrontar, morreu.

Tradução: Danilo Matos